Introdução à Clínica Psicogeriátrica do Envelhecimento e dos processos Demenciais

  • Há uma significativa variedade de métodos para descrever a idade de uma pessoa.
    Por exemplo, o envelhecimento pode ser descrito em termos dos processos que
    afetaram a pessoa conforme aconteciam. Eles podem ser divididos em
    acontecimentos relativamente distantes (por exemplo, falta de mobilidade devido
    à poliomelite infantil), conhecidos como efeitos distais de
    envelhecimento
    , e mais recentes (como falta de mobilidade devido a uma
    perna quebrada), conhecidos como efeitos proximais de envelhecimento.
    Mais uma vez, o envelhecimento pode ser definido em termos da probabilidade de
    se adquirir uma determinada característica da velhice. Os aspectos de envelhecimento
    universal
    são aqueles que todas as pessoas mais velhas compartilham em
    certa extensão (por exemplo, pele enrugada), enquanto os aspectos de envelhecimento
    probabilístico
    são prováveis, mas não universais (por exemplo, artrite
    ou glaucoma). Esses termos podem ser 
    comparados aos conceitos semelhantes de envelhecimento primário (mudanças
    corporais da idade) e envelhecimento secundário (mudanças que
    ocorrem com maior freqüência, mas não são um acompanhamento necessário). Alguns
    autores acrescentaram um terceiro termo conhecido como envelhecimento
    terciário
    , que consiste na rápida e acentuada
    deterioração física imediatamente anterior à morte.
  • Em que ponto exatamente uma criança deixa de ser criança e torna-se adolescente? E
    um adolescente quando passa a ser reconhecido como adulto? Igualmente, em que
    ponto uma pessoa abandona a "meia-idade" e se torna idoso? Podemos observar, ao
    longo de vários anos, que as características físicas e mentais de uma pessoa
    estão mudando, mas seria difícil indicar exatamente o momento em que algum
    limiar foi claramente transposto. Essa é uma das razões pelas quais a medida
    comumente empregada como idade cronológica é tão insatisfatória.
    A idade cronológica é simplesmente a medida de quão velha uma pessoa é. Mas ela
    é essencialmente uma medida arbitrária. Quantas vezes a terra deu a volta ao
    redor do sol desde que uma pessoa nasceu não nos diz nada sobre a qualidade de
    cada um desses intervalos (anos). De fato, em muitas circunstâncias, a idade,
    sozinha, é um indicador insuficiente. Por exemplo, ela tem pouca correlação com
    as mudanças físicas. Podemos pensar em pessoas de 70 anos com a aparência
    estereotípica de pessoas velhas (cabelo grisalho, pele enrugada, postura
    encurvada, etc.), mas também lembramos indivíduos "bem-conservados" que não apresentam
    esse aspecto (agerasia) e adultos mais jovens - como o que vos
    oferece esta leitura - que parecem prematuramente envelhecidos. É importante
    distinguir estes últimos dos transtornos (extremamente raros) através dos quais
    o envelhecimento é imensamente acelerado: a progeria (ou síndrome
    de Hutchinson-Gilford
    ), em que o paciente começa a envelhecer
    rapidamente no início da infância e costuma morrer no início da adolescência, e
    a síndrome de Werner, que se desenvolve na adolescência (os
    pacientes costumam morrer aos 40 e poucos anos). Em ambas as doenças, os
    pacientes desenvolvem características e sintomas físicos semelhantes a um
    envelhecimento extremo, mas ainda está aberto a debate se isso é um
    envelhecimento genuinamente acelerado ou simplesmente se ocorre,
    coincidentemente, com o envelhecimento.
  • Outra medida comumente usada é a idade social, que se refere às
    expectativas da sociedade em como a pessoa deve comportar-se em determinada
    idade cronológica. Em algumas sociedades contemporâneas, e em muitas outras
    mais históricas, uma vida longa é / era considerada a recompensa por um
    comportamento piedoso. Duas das crenças mais comuns decorrentes disso foram
    classificadas como o mito do envelhecimento antediluviano e o mito
    do envelhecimento hiperbóreo
    - as crenças de que em épocas antigas ou
    em uma terra muito distante, respectivamente, havia / há uma raça de pessoas
    virtuosas com períodos de vida inacreditavelmente longos. As sociedades
    modernas industrializadas têm uma visão diferente. A velhice não é vista como
    um tempo de recompensa, e sim de relaxamento forçado (aposentado é aquele que
    permanece em seu aposento). Portanto, a cultura ocidental espera que as pessoas
    com mais de 60, 65 anos de idade se comportem de forma essencialmente sossegada
    e, não surpreendentemente, o início da velhice freqüentemente é indicado pela
    aposentadoria do trabalho integral.
  • Alguns autores dividem os adultos mais velhos em idosos jovens e idosos
    velhos
    (ou "velhos jovens" e "velhos velhos"). Mas as idades exatas
    envolvidas nesta categorização variam para cada autor. Alguns acham que "idoso
    jovem" descreve qualquer pessoa entre 65 e 75 anos, enquanto "idoso velho" se
    refere àqueles mais velhos. Outros autores consideram intervalos diferentes
    (por exemplo, 60-80, ou 65-80, ou 65-75 para o grupo de velhos jovens). De
    qualquer modo, aconselha-se cautela na leitura e interpretação em relatos que
    empreguem esses termos. Outro método divide as pessoas acima de 65 anos em terceira
    idade
    e quarta idade. A chamada "terceira idade" se refere
    a um estilo de vida ativo e independente na velhice, e a "quarta idade" a um
    período (final) de dependência em relação aos outros. É importante ressaltar
    que, muito embora muitos desses termos sejam amplamente utilizados em nosso
    meio, trata-se do que chamamos de gerontologia popular e, não
    necessariamente, todos vão apreciar tais considerações. Certo levantamento de
    1991 revelou que a maioria (72%) das pessoas mais velhas preferia termos
    como "cidadão sênior" ao tradicional "idoso" (5%) ou "pessoa mais velha" (4%).
  • O termo "idade biológica" refere-se ao estado corporal de desenvolvimento /
    degeneração física. Comumente, o termo é utilizado de modo bastante livre para
    descrever o estado geral do corpo de uma pessoa. Porém, as vezes, são
    empregados termos mais específicos: idade anatômica (o estado
    relativamente geral da estrutura óssea, constituição corporal, etc.); idade
    carpal
    (o estado dos ossos do pulso [carpais]); e a idade
    fisiológica
    (o estado dos processos fisiológicos, tal como o ritmo
    biológico). O envelhecimento é o estado final do desenvolvimento, que todo
    indivíduo sadio e que não sofreu acidentes vai atingir. Entretanto, devemos
    cuidar para não superampliar a palavra "desenvolvimento" e dar a impressão de
    ganho ou aprendizagem. Em verdade, um autor enfatiza esse ponto classificando a
    velhice como etapa pós-desenvolvimental: todas as capacidades
    latentes do desenvolvimento foram realizadas, deixando apenas potencialidades
    de dano de ação tardia. As células corporais não são imortais e o ciclo da
    morte e regeneração celular levou alguns autores a defenderem a teoria do
    envelhecimento programado
    (isto é, que a morte celular - apoptose
    -  é, na verdade, pré-programada).
  • Outra teoria - a teoria do envelhecimento da mutação somática - afirma
    que o problema se compõe porque as células substitutas não são réplicas exatas,
    mas células que contém erros (uma variação disso - a teoria da catástrofe
    do erro
    - põe a culpa na replicação defeituosa da proteína). Essa
    replicação defeituosa pode ser exacerbada por fatores como poluentes ambientais
    e dietas mal equilibradas. Em contraste, a teoria do envelhecimento
    auto-imune
    argumenta que o envelhecimento pode ser atribuído a defeitos
    no sistema imunológico. Em primeiro lugar, ao se tornar menos capaz de combater
    infecções e, em segundo, ao identificar erradamente as células do corpo como
    agentes infecciosos e ataca-las. Um último argumento é a teoria do lixo
    celular
    onde o envelhecimento ocorre devido a toxinas produzidas como
    subprodutos da atividade celular normal. Estes incluem um pigmento chamado
    lipofucsina e um conjunto de substâncias químicas chamadas radicais
    livres
    . Sejam quais forem as causas das mudanças corporais, não há
    dúvidas de que elas ocorrem. Um aspecto notável é a perda de células. É
    importante lembrar que isso não se inicia na velhice, mas na idade adulta
    jovem, com a maioria dos sistemas corporais apresentando um declínio de 0,8 -
    1% por ano, após os 30 anos de idade.

ENVELHECIMENTO E DETERIORAÇÃO COGNITIVA

  • A maioria absoluta das pessoas, se solicitadas a descreverem os efeitos do envelhecimento sobre
    aspectos da inteligência, diria, certamente, de forma estereotipada, que os
    adultos mais velhos possuem mais conhecimento, mas raciocinam mais lentamente.
    Em resumo, diriam que o envelhecimento é caracterizado por acréscimo na
    sabedoria
    , entretanto, decréscimo das capacidades cognitivas.
    Estudos apontam nesta direção no momento em que, indagando colaboradores
    aleatoriamente sobre a descrição de uma pessoa "excepcionalmente inteligente"
    de 30, 50 ou 70 anos, os sujeitos tendiam a enfatizar a "capacidade de lidar
    com o novo" , nas pessoas mais jovens e, nos adultos mais velhos, "competência
    e responsabilidade". Sabe-se lá quanto exatamente destas crenças não estão
    sujeitas, também, a uma cultura. Por exemplo, em nosso meio (ocidental),
    pintores e escultores condicionaram as pessoas a acreditarem que a
    representação de um velho sadio, sentado e pensando, é automaticamente a
    representação do epítome da sabedoria.
  • Sabe-se que, desde a década de 1980 a maioria dos idosos vive em países do
    Terceiro Mundo
    , conclusão ainda não muito apreciada por estudiosos que
    associam a velhice aos países mais desenvolvidos da Europa ou América do Norte.
    Na América Latina, entre 1980 e o ano 2025, deverá ocorrer um aumento de 217%
    da população total (de 362,1 para 786,6 milhões), enquanto o aumento da
    população acima de 60 anos será de 412% (de 23,3 para 96,2 milhões), ou seja,
    duas vezes maior que o percentual de aumento da população como um todo.
  • O conceito de envelhecimento normal tem sido muito discutido. Envelhecer com
    sucesso depende em grande parte de manter níveis de habilidades cognitivas que
    permitam a interação efetiva e apropriada com o meio ambiente em
    que se está inserido. Discretas modificações destas funções ocorrem com o
    envelhecimento, mas geralmente não interferem substancialmente com as
    atividades do dia a dia, a menos que haja insulto causado por uma doença. Neste
    sentido, idosos experimentam menor velocidade de processamento cognitivo, queda
    da amplitude atencional, redução das acuidades auditiva e visual, perda de
    reflexos, alterações do sono, e mais uma série de possíveis prejuízos. Estas
    alterações correspondem às modificações estruturais associadas à idade, havendo
    uma ampla variabilidade da extensão na qual estas mudanças ocorrem.
  • O efeito do envelhecimento sobre a atenção no processo visual foi investigado
    através do paradigma de troca da atenção visual desencadeada por
    dicas espaciais em adultos com idades variando entre 20 e 70 anos. A eficiência
    da troca de atenção baseada na dica pareceu ser resistente ao efeito da idade
    até os 69 anos, observando-se, no entanto, efeito da idade no tempo de reação.
  • Trabalha-se com a hipótese de que os idosos, quando comparados com jovens sadios, têm
    dificuldade de memorizar novos conteúdos porque não são capazes de inibir
    estímulos irrelevantes, tarefa esta intimamente relacionada à memória
    operacional. Este paradigma pôde ser demonstrado tanto em provas de evocação
    livre como aprendizagem pareada
    .
  • Conseqüências do envelhecer sobre resolução de problemas também foram extensamente estudadas.
    Mulheres de meia idade e idosas foram testadas por matrizes de problemas.
    O aumento de informações irrelevantes afetou o tempo de processamento e os
    resultados em ambos os grupos, mas as de meia idade foram significativamente
    mais rápidas e precisas do que as mais velhas.
  • Em estudo com amostra de base populacional, através da utilização da bateria
    Cambridge Neuropsychological Test Automated Battery (CANTAB), foi avaliado um
    grande grupo de voluntários idosos controlados pelo Q.I estimado e Mini-Exame
    do Estado mental. Dois fatores foram identificados; um constituído de
    habilidades gerais de aprendizado e memória e carregado significativamente com
    escores de inteligência e o segundo relacionado com velocidade de
    resposta
    e carregado mais fortemente com a idade. Estes dados podem ser
    interpretados como mudanças adaptativas da função cognitiva durante o processo
    de envelhecimento.
  • Em outra avaliação longitudinal de cinco anos utilizando o Mini-Exame do Estado
    mental, mais de 2.500 franceses com idade acima de 65 anos foram acompanhados.
    Os escores elevaram entre a visita inicial e após um ano, e diminuíram
    discretamente entre o 1o e o 5o anos. A melhora no
    primeiro ano, maior para indivíduos de escolaridade mais elevada, pode ser
    explicada pelo estresse da situação de teste ou por efeito de aprendizado.
    Já o declínio nos últimos quatro anos foi maior nos participantes mais velhos e
    de menor escolaridade. O desempenho neste exame diminuiu também nos sujeitos
    sem hipótese de síndrome demencial.
  • Os desempenhos cognitivos insatisfatórios (percentís inferiores), podem ter papel
    importante na perda subseqüente de independência nas atividades de vida diária.
    Participantes de um estudo com desempenho cognitivo insatisfatório,
    apresentaram risco duas vezes maior para perda da autonomia em tarefas
    domésticas básicas. Houve correlação direta entre escores reduzidos em teste
    cognitivo e funcionalidade comprometida.
  • Os aspectos de produtividade relativamente comprometidos na velhice são também os
    que exigem processamento de novas conexões. O padrão de novas aprendizagens e
    aprendizados antigos preservados localizam-se, justamente nas distinções entre
    memória semântica, episódica, explícita e talvez implícita. Informação verbal
    usual não é completamente preservada quando avaliada mais por produção do que
    por aquisição. Este e outros padrões de habilidades preservadas e
    comprometidas, representam um desafio fundamental pata teorias do
    envelhecimento cognitivo em populações heterogêneas.
  • Diferentes classificações diagnosticas têm sido propostas para uso na caracterização de
    transtornos cognitivos associados ao envelhecimento. Dentre estes conceitos
    clínicos, o de Comprometimento Cognitivo Leve (CCL) tem sido o
    mais amplamente estudado nacional e internacionalmente. Os principais critérios
    diagnósticos sugeridos são: 1) comprometimento subjetivo de memória,
    preferencialmente confirmado por um informante; 2) comprometimento objetivo de
    memória comparado com grupo emparelhado por idade e escolaridade (tem sido
    usualmente sugerido que o desempenho deve situar-se abaixo de 1,5 desvio padrão
    da média); 3) funcionamento cognitivo global normal; 4) independência quanto às
    atividade de vida diária; 5) ausência de demência. As demais funções não estão
    necessariamente preservadas, contudo o grau de comprometimento não é suficiente
    para o indivíduo ser diagnosticado como demente.
  • Sobre esta última observação, em encontro de pesquisadores realizado em 1999 na
    cidade de Estocolmo, discutiu-se que o CCL poderia ser dividido em três
    categorias diferentes: 1) CCL amnésico com maior risco de desenvolver doença de
    Alzheimer; 2) CCL leve com comprometimento de múltiplos domínios cognitivos com
    risco para outras doenças além de Alzheimer; 3) CCL com comprometimento de uma
    única função cognitiva diferente de memória e risco para afasia progressiva
    primária e/ou demência fronto-temporal.
  • Apesar dos sistemas de classificação diagnóstica de declínio da capacidade cognitiva
    no envelhecimento sugerirem queixa subjetiva de déficit de memória como
    critério de inclusão, as evidências da literatura mostram que a percepção
    subjetiva não corresponde necessariamente ao comprometimento objetivo da função
    e isoladamente não consegue predizer o desenvolvimento de demência. Os estudos
    que sustentam esta posição mostram que a queixa subjetiva reflete estado
    afetivo e, não necessariamente declínio cognitivo.
  • Como puderam ser observados, os déficits entre idosos saudáveis consistem de leve
    lentificação generalizada, discreta queda no processo atentivo executivo e
    perda na precisão quando comparados com pessoas mais jovens, podendo ser
    medidos por testes objetivos que mimetizam situações do cotidiano.
    Em contrapartida, alterações nesta fase do desenvolvimento podem ser bastante
    discretas e sensíveis requerendo especial atenção e perspicácia por parte da
    família, comunidade e equipes profissionais especializadas.
  • Em geral, o envelhecimento de uma pessoa é o envelhecimento de suas células. O
    processo de envelhecimento (ou senescência), caracteriza-se, basicamente, por
    declínio gradual no funcionamento de todos os sistemas do corpo
    (Cardiovascular, respiratório, geniturinário, endócrino, imunológico) e também,
    neurológico. A crença de que a velhice está associada, invariavelmente, com
    profunda debilitação intelectual e física, entretanto, é um mito. Boa parte das
    pessoas idosas retém suas capacidades cognitivas e físicas (em grau
    mesmo que reduzido) independente das mudanças que acompanham tal processo.